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Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio

Por: Ph. D. Ángela Hiluey (Centro de Estudios da Família- Itupeva)

“O mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável.”

(Merleau-Ponty, 1971, p.14)

Esta epígrafe nos oferece a oportunidade de nos apercebermos que enquanto tivermos vida teremos a possibilidade de aprender e assim poderemos tecer diferentes narrativas individuais e familiares.

Tais possibilidades podem nos estimular a enfrentar os desafios com os quais nos defrontamos na prática clínica. Temos uma vasta bibliografia na terapia familiar e em outros campos do conhecimento que são o nosso alicerce para seguirmos em frente. Tais pressupostos poderão auxiliar a autora a apresentar o objetivo desse trabalho.

Linares (2014) nos abre uma primeira porta para enfrentarmos tal desafio quando se refere ao sentido de sua expressão: Terapia Familiar Ultramoderna. O autor explicita que tem com essa terminologia o objetivo de estimular a abertura das janelas do território sistêmico para ares novos para que se alimente com aquilo que há de muito bom já presente na tradição psicoterapêutica.

No entanto estar aberto ao mundo, conforme a epígrafe permite vislumbrar, não é  necessariamente uma possibilidade tão natural, e as palavras de Bion (1992) nos confirmam tal vislumbre:

(…) Mas todos nós odiamos a tempestade que implica o ato de rever nossas visões; é muito perturbador pensar que poderíamos chegar a mudar de parceiro, ou profissão, ou país, ou sociedade; assim, a pressão para dizer “ daqui não passo” estabelece uma resistência ao aprendizado (…).

Bion, 1992, p.9-10.

A presença da abordagem sistêmico integrativa por outro lado materializa o incentivo de Linares (2014) propiciando a integração das múltiplas escolas sistêmicas às contribuições de outras abordagens, dentre elas a psicanalítica, bem como de abordagens advindas de outros campos do conhecimento. Tal integração é fruto de uma  postura aberta que favorece o nosso enriquecimento para nos ocuparmos das situações as quais a prática clínica nos apresenta, onde se constata que a mudança não é algo tão simples de ser conseguido.

Selvini, Sorrentino, Cirillo (2016) utilizam o termo pensamento sistêmico, complexo e integrado e, assim, revelam estarem intervindo, segundo uma postura integrativa.

Linares (2003; 2015) por sua vez ao escrever que narrativa é a atribuição de significado à experiência relacional, que ocorrerá desde a vida intrauterina até a morte, nos mostra quão rica pode ser nossa vida com uma diversidade de narrativas. Essa narrativa, segundo Linares, é o ato de descrever a si mesmo e ao que lhe acontece, dando a isso uma coerência, o que por sua vez é cultural e pessoal.

Laso (2017) pode auxiliar a especificar o que favorece as mudanças. Laso (2017) discorre sobre como vem levando em conta e intervindo sobre o aspecto emocional na terapia familiar e de casal. Esse autor destaca dois princípios fundamentais para viabilizar a mudança emocional: (1) compreender o lugar onde se está e(2) ver ou ao menos vislumbrar o lugar para onde se dirigir. Compreensão e visualização  são conquistas  advindas  da experiência emocional desses grupos, segundo o autor.

As considerações dos autores citados permitem  evidenciar que o objetivo desse trabalho é mostrar uma ferramenta para auxiliar a construir novas narrativas dadas as dificuldades implicadas nesse processo. Tal ferramenta é constituída pelas expressões artísticas e o brincar, atividades descritas em outros campos do conhecimento e/ou modelos teóricos que podem ser integradas ao atendimento de casais e famílias.

Tornam-se importantes ferramentas uma vez que a possibilidade de escrever novas histórias é inesgotável.  Por outro lado já que sabemos que reavaliar nossas posições é assustador, que precisamos nos dar conta de nosso lugar na relação (o que ainda implica outras gerações) bem como visualizar novos caminhos antes de seguir adiante podemos perceber a complexidade do processo. Sendo assim, ter novas ferramentas que possam abrir possibilidades para novas narrativas pode nos ser útil na prática clínica.

Pereira (2010) ao discorrer sobre o tipo de intervenção para promover a Resiliência Familiar   mostra que a mesma deve permitir que se reconheça na narrativa familiar o  sofrimento, que dê sentido ao ocorrido e um significado que possa ser aceito por todos os membros da família. Ou seja nesse contexto continente como recomenda Pereira (2010) uma tempestade emocional como postula Bion está vigente precisando ser nomeada. Esta afirmação permite o reforço da tese sobre a relevância de mecanismos para abrir possibilidades para construção de novas narrativas.

 Nesse trabalho o objetivo é apresentar a atividade artística- lúdica como útil ferramenta para a terapia de casal e família ao mesmo tempo que evidenciar tanto a relevância como o que está implicado no planejamento da mesma pelo terapeuta para se favorecer a possibilidade de conversar sobre as dificuldades vividas.

Fazem-se, então, necessárias algumas considerações sobre as possibilidades desse instrumental.

Kenzler (1995) escreveu que o ser humano se defende das emoções e para tanto utiliza mecanismos de defesa. Sendo assim, segundo Kenzler (1995) o uso de técnicas em que o ser humano expressa sua angústia, sem perceber o que está fazendo pode ser significativo. Aqui temos as artes e o brincar.

Fernandes (2003) por sua vez especifica diferentes linguagens que transmitem a informação tais como: as atitudes, a mímica, a palavra, a escrita, o desenho. A arte, segundo Fernandes (2003)  em suas cores e sons, melodias, ritmos, compõe e expressa.

Dentre essas diferentes maneiras de comunicação está o brincar como escreve Winnicott (1971).

 Green (2013) completa escrevendo que na realidade externa existe horror demais: guerra, delinquência, catástrofes naturais, epidemias, desemprego e terrorismo nesse nosso mundo . Grenn (2013) pergunta-se  como suportaríamos todos os traumas causados pela realidade sem o brincar onde no caso das crianças todos esses temas se encontram.

Andrade (1995) escreveu que nas diversas expressões artísticas o homem se coloca diante da realidade, ao expressar por meio de uma simbolização (a obra de arte) como estrutura seu mundo interior. A arte, pode, também, segundo ele, ser terapêutica, pois permite acessar a emoção tanto do criador como no público participante. O criador e o produto da criação são o porta-voz de como o homem aliou as sensações e percepções frutos de sua experiência pessoal e relacional. Através da arte forças oponentes podem ser integradas graças a sua qualidade integrativa.

Hiluey (2004; 2007; 2008) no contexto da investigação com alunos-médicos e famílias pode constatar a relevância de tal ferramenta para favorecer tanto o despontar do que angustia como para integrar percepções e informações. Novos caminhos podiam  ser vislumbrados.

Para tanto uma ilustração prática parece ser oportuna e aqui se segue.

Pode-se constatar que Enganar era o termo que melhor exprimia aquilo que vivia a Família Silva (nome fictício) com seu filho de 11 anos. Essa vivência de ser enganado, respaldada por situações concretas  gerava um sentimento de falta de confiança dos pais para com seu filho. A terapeuta tinha dados que lhe permitiam pensar que para os pais se aperceberem de seu filho não era algo simples. Eles possuíam alguns princípios e formas de educar filhos alinhados com as gerações anteriores e sua própria vivência enquanto filhos para os guiarem. Isso interferia significativamente impedindo que pudesse circular reconhecimento, valorização e carinho entre eles,  o que favoreceria a possibilidade de seu filho ter uma vivência de ser  amado, como descreveu  Linares (2014).

A terapeuta optou por algumas técnicas expressivas as quais permitiram que um espaço fosse aberto para gerar novas narrativas que propiciaram a Família Silva experimentar um clima de confiança. Algumas das técnicas foram:

1) genograma lúdico que favoreceu que conversassem sobre as características das figuras de animais escolhidas para representar alguns membros da família o que gerou novas ideias sobre o relacionamento entre eles. Por exemplo o leopardo como um animal solitário; o hipopótamo como um animal altamente violento apesar de seus olhos doces. O diálogo possibilitou o reconhecimento da dinâmica estabelecida entre eles e a implicação de outras gerações nesse processo.

2) cada um escolher miniaturas em madeira de personagens, pessoas, animais, aves, objetos. A seguir se propunha conseguir as miniaturas que quisesse solicitando ao outro. Alguns dos temas conversados nesse jogo foram: que percebiam que através de truques até mímicos se engana para conseguir o que se quer; se aperceberam que tem coisas que não se quer dar; quem é enganado fica triste e com raiva.

3) leitura de conto infantil. Por exemplo: A toupeira que queria ver o cometa, de Rubem Alves. Onde se pode conversar sobre a prisão decorrente das próprias convicções que impedem de ver o que está diante dos olhos.

4) Ouvir a música: “Apenas tenha certeza que nunca está sozinho” (93 Million Miles). Solicitou-se que com recursos não-verbais mostrassem como lhes chegou essa música. Pode-se conversar tanto  sobre o que cada um esperava dos outros membros da família como foram constatando  o que lhes era possível. Pode-se sinalizar que a confiança parecia estar vindo a ser uma experiência possível entre eles.

Em sessões com o casal parental puderam rever suas convicções sobre como deveriam se portar como pais versus  sobre o que lhes era possível ser bem como se aperceberam de novas características do filho, até  então  não percebidas. Diziam eles: como a toupeira (referindo-se à personagem do livro infantil).

E assim uma nova narrativa despontou. Nessa nova história pais e filho lutavam focando três instâncias: a do querer, poder e dever enquanto iam se transformando, em família.  Não estavam sozinhos, percebiam que tinham com quem contar, podiam confiar.

Comentários: a atividade artística lúdica

1) permite que se trate de temas penosos com seriedade, firmeza e humor, sem necessariamente deixar de chorar e/ou mesmo ficar bravo;

2) o terapeuta deve propor atividades que no seu entender propiciarão que surjam os temas que segundo sua percepção estão circulando no grupo familiar;

3) deve-se levar em conta as características das pessoas da família para escolher a atividade lúdica que possa lhes ser possível. Nem todas as pessoas se dispõe a brincar, mas dependendo da brincadeira até podem se dispor;

4) aqueles terapeutas que tenham uma experiência no trabalho com crianças e adolescentes, em especial em ludoterapia, terão um conhecimento relevante para utilizarem essa ferramenta no atendimento de casais e famílias.

5) o terapeuta deve ser significativamente participativo e utilizar seus conhecimentos teórico-técnicos em terapia familiar para fazer alinhamentos ao longo da sessão a partir das novas informações e percepções circulantes.

No entanto mesmo estimulados por novas ideias vale lembrarmos da mensagem de Antonio Machado: Caminhante, não há caminho. O caminho se faz ao caminhar.

Bibliografia

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ANDRADE, L.Q. (2000) Terapias Expressivas- Arte-terapia; Arte- Educação; Terapia Artística. São Paulo: Vetor.

BION, W. (1992) Conversando com Bion. Rio de Janeiro: Imago Editora.

CIRILLO, S; SELVINI, M; SORRENTINO, (2016) A.M. Entrare in terapia- Le sette porte della terapia sistêmica. Milano: Raffaelo Cortina Editore.

FERNANDES, B.S. (2003) Arte-terapia e grupos. In: FERNANDES, W.J.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, B.S. et al. Grupos e Configurações Vinculares. Porto Alegre: Artmed.

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LASO, E. Facilitando el cambio emocional en terapia familiar y de pareja. Disponível em: HTTP://www.redrelates-boletin.org/facilitando el cambio emocional en terapia familiar y de pareja/

LINARES, J.L. (2014)Terapia Familiar Ultramoderna- a inteligência terapêutica. São Paulo: Editora Idéias & Letras.

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MCGOLDRICK, M; GERSON, R; PETRY,S;GIL,E. (2012) Genogramas Lúdicos. In: MCGOLDRICK, M; GERSON,R; PETRY,S. Genogramas- avaliação e intervenção familiar. 3ed. Porto Alegre: Artmed.

MERLEAU-PONTY, M. (1971) Fenomenologia da Percepção. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S.A.

PEREIRA, R. (2010) Trabajando com los Recursos de la Familia: Factores de Resiliencia Familiar. Sistemas Familiares. Año 26, nº 1, PP. 93-115, Julio.

WINNICOTT, D.W. (1975) O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora.

 

1 Comentario en Abrir a possibilidade para novas narrativas: um desafio

  1. Johne640 // abril 2, 2017 en 7:41 pm //

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